Como a COVID-19 ataca os rins?

OS RINS NA COVID-19

Texto do Dr. Fernando Thomé

Os rins são fundamentais para a manutenção da vida, evoluindo de um simples filtro para remover substâncias indesejáveis em animais marinhos simples até o órgão complexo no corpo humano, com diferentes funções e tendo relações com os outros órgãos, recebendo e transmitindo mensagens.

Controla o equilíbrio dos líquidos corporais, como a concentração de minerais e substâncias orgânicas, a acidez e a concentração desses líquidos. Mantém a saúde dos ossos, controlando cálcio, fósforo, magnésio e ativando a vitamina D. Evita a anemia ao estimular a medula dos ossos a produzir glóbulos vermelhos. Regula a quantidade de sódio no corpo, mantendo a pressão arterial equilibrada, também com a ajuda da produção de hormônios que agem nos vasos sanguíneos.

Para executar essas funções, os rins recebem uma quantidade desproporcional de sangue. Apesar de pesarem apenas 150 g (< 1% do corpo) e medirem de 10 a 13 cm cada um, recebem 20% (uma quinta parte) de todo o sangue bombeado pelo coração. Esse sangue flui por artérias que se bifurcam em ramos cada vez menores até chegar num enovelado de capilares com paredes muito finas, chamado de glomérulo, onde acontece a filtração. Cada rim possui cerca de um milhão de glomérulos. O comprimento total de todos os capilares glomerulares somados chega a 19 Km, e eles ocupam uma superfície de pouco mais de meio metro quadrado, embora menos do que um décimo dessa superfície seja útil para filtração. Esse líquido filtrado, cerca de 180 litros por dia, percorre um sistema de canais (túneis), chamado de túbulos, onde substâncias necessárias ao organismo são reabsorvidas, junto com a maior parte da água preciosa de que necessitamos num ambiente terrestre, enquanto outras substâncias são secretadas para também serem eliminadas. Após essa cuidadosa manipulação desse filtrado, resta 0,5 a 2 litros de urina, que são eliminados através de vias urinárias e a bexiga.

Por que tanto sangue e tantos canais para carregá-lo? Exatamente para conseguir cumprir suas funções. Essa é a grande força dos rins, mas é também sua maior fraqueza. Com tanto sangue chegando aos rins diretamente do coração, vários elementos presentes na corrente sanguínea podem afetar e danificar os rins. A começar pela pressão do sangue que pode danificar as delicadas paredes capilares ou um aumento de fluxo provocado por uma necessidade aumentada de funcionamento (obesidade, rins pequenos, excessos dietéticos). As artérias e os capilares também podem sofrer doenças próprias. Além disso, tudo que o sangue carrega de modo anormal ou exagerado pode eventualmente lesionar os rins, como glicose, gorduras, ácido úrico, anticorpos anormais, proteínas anormais, substâncias tóxicas do próprio corpo, remédios, cálcio, substâncias orgânicas anormais, metais, produtos derivados do tabaco e de outras drogas. Por outro lado, se os rins receberem pouco suprimento sanguíneo, isso também prejudica sua função (obstrução das artérias que alimentam os rins, pouco líquido no corpo por desidratação ou hemorragias, falta de força do coração). A outra maneira de haver dano aos rins é retrogradamente, de baixo para cima, pela urina: minerais que se acumulam e formam calcificações ou cálculos, dificuldade de drenagem da urina por problemas estruturais ou funcionais das vias urinárias, infecções que chegam aos rins.

Qualquer dessas condições que possa prejudicar as funções dos rins resulta numa condição coletivamente chamada de doença renal crônica. São doenças difusas, que acometem ambos os rins e ameaçam a integridade das funções dos rins. Seja qual for a causa, o que se percebe ao fim é uma esclerose (endurecimento) dos glomérulos e uma fibrose (cicatrização anormal) dos tecidos internos dos rins, chamados de interstício, e isso leva a uma atrofia desses órgãos.

Há maneiras simples de saber se há uma doença renal crônica. Pode-se medir uma substância no sangue, chamada creatinina, a partir da qual, com fórmulas simples se chega a estimar o quanto o rim está filtrando. Normalmente, o rim filtra de 90 a 120 ml de sangue (meio copo) por minuto. Se a filtração for menor do que 60 ml/min e isso perdurar por mais de três meses, trata-se de doença renal crônica. A outra maneira de fazer o diagnóstico é através de um exame de imagem, que pode mostrar alterações difusas compatíveis com lesões renais crônicas, ou então pela pesquisa de proteína na urina. A presença anormal de proteína ou albumina na urina por mais de três meses indica lesão renal, usualmente nas paredes capilares de filtração. Estima-se que 10 % da população tenha doença renal crônica, a grande maioria de forma assintomática. O desgaste dos rins pelo envelhecimento e pelo acúmulo de agressões que eles sofrem ao longo da vida explica a grande proporção de pessoas acometidas. E a estimativa é que a doença renal crônica será cada vez mais uma causa importante de limitações no futuro, com maior número de casos e consequências crescentes.

Quais são as consequências da doença renal crônica? Em primeiro lugar, ela predispõe – por vários mecanismos – à doença cardíaca, aumentando o risco cardiovascular de modo mais significativo do que outros fatores de risco. Isquemia, aumento do coração, arritmias, insuficiência cardíaca são todas complicações que podem resultar da doença renal crônica. Em segundo lugar, ela torna o indivíduo mais suscetível a outras complicações e doenças, aumentando o risco cirúrgico, aumentando a chance de internações por várias situações. Em terceiro lugar, ela aumenta muito o risco da insuficiência renal aguda, uma condição em que os rins param de funcionar por várias causas e traz alto risco para o indivíduo, E finalmente a doença renal crônica pode levar à insuficiência renal avançada, que é uma situação incompatível com a vida, necessitando de diálise ou transplante para mantê-la.

Toda a vez que a função dos rins cai a ponto de tornar a vida insustentável, seja por insuficiência renal aguda seja por insuficiência renal crônica avançada, é necessário substituir a função renal. Pode-se fazer isso por um equipamento de rim artificial, limpando ou depurando o sangue por filtros especiais. É o que se chama de hemodiálise. Pode-se também fazer essa depuração através de uma membrana que temos dentro da cavidade abdominal, chamada de peritônio. Faz-se a infusão de líquidos no interior do abdômen e ocorre filtração pelo peritônio, de modo que o líquido, ao sair, remova as impurezas que precisamos eliminar. Esta é a diálise peritoneal. A insuficiência renal aguda geralmente é reversível, e os rins voltam a funcionar permitindo interromper o tratamento de substituição. No caso da doença renal avançada, em que a possibilidade de recuperação de função não existe, planeja-se um transplante renal com um doador vivo compatível ou com um doador falecido. Essa situação requer um preparo exaustivo tanto do doador quanto do receptor.

A Covid-19 pode atacar os rins por diversos mecanismos. Em primeiro lugar, os rins apresentam os receptores ECA-2 que são usados pelo SarsCov-2 para entrar nas células. Eles ocorrem tanto em algumas células dos glomérulos quanto em células dos túbulos. Ainda se discute qual é o papel do vírus na lesão direta aos tecidos renais, mas uma alteração bem demonstrada é a glomerulonefrite colapsante, uma situação em que os capilares glomerulares “murcham”, impedindo a filtração. Felizmente, parece ser uma situação menos comum. Uma lesão nas células tubulares pode causar uma outra alteração funcional (síndrome de Fanconi). Ambas situações causam perda de proteína na urina.

Outra consequência do coronavírus é uma lesão do tapete interno dos vasos sanguíneos e dos capilares, chamado de endotélio. A angiotensina 2 é uma substância importante que contribui para essa lesão. Há uma contração anormal dos vasos sanguíneos e prejuízo à circulação. Como o rim tem uma superfície endotelial muito grande, essa lesão pode afetar a filtração normal.

Uma terceira via de lesão é a alteração que ocorre no sistema de coagulação, por surgimento de proteínas inflamatórias, pela lesão no endotélio e por alterações nas pequenas células responsáveis por estancar o sangue quando sangramos, chamadas de plaquetas. Todos esses mecanismos podem levar à formação de coágulos dentro dos vasos sanguíneos, o que se chama de trombose. Isso pode ocorrer em vasos renais grandes ou microscópicos.

Por fim, a liberação no sangue de proteínas inflamatórias em resposta ao vírus, a chamada “tempestade inflamatória”, atinge todos os elementos renais e lesa os túbulos e o interstício, causando insuficiência renal aguda.

Um autor chamou esse mecanismo de “os quatro cavaleiros do apocalipse”: agressão viral direta, lesão endotelial por angiotensina, microtromboses e inflamação desenfreada.

Além disso, os rins sofrem outras agressões pela Covid-19. Muitos pacientes ficam desidratados pela doença e sofrem pela diminuição de fluxo de sangue aos rins. O coração e o aparelho circulatório são atingidos pela doença e pode faltar pressão suficiente para alimentar os rins, além de que o sistema de retorno do sangue pelas veias pode ficar estagnado e prejudicar a filtração normal. (síndrome cardiorrenal). Muitas viroses, e a Covid é um exemplo, podem causar destruição de células musculares (rabdomiólise), e o conteúdo tóxico do interior dessas células se espalha pelo sangue e causa dano renal importante. Pacientes com dificuldades respiratórias pela Covid são colocados em respiração artificial após intubação. A pressão do ar insuflado nos pulmões também atrapalha a circulação do sangue aos rins e contribui para a lesão renal aguda. Os impactos da Covid afetam não apenas os glomérulos e túbulos renais, levando a insuficiência renal aguda, mas também desarranjam o equilíbrio dos minerais no sangue.  Por fim, muitos remédios usados no tratamento da Covid são tóxicos para os rins e amplificam a lesão.

Quais as manifestações sugestivas de envolvimento renal na Covid-19? Já nos primeiros estudos feitos em 2020, percebeu-se que três manifestações renais previam uma evolução mais grave da Covid: sangue microscópico na urina (hematúria), perda de proteína pela urina (proteinúria) e elevação da creatinina em relação aos valores basais do paciente. Essas manifestações indicam potencial gravidade do quadro de Covid, assim como acontece com as manifestações respiratórias.

Se o indivíduo evolui com perda aguda da função renal, caracterizada por elevação progressiva, rápida e sustentada da creatinina no sangue, está caracterizada a injúria renal aguda, ou insuficiência renal aguda, que indica situação mais grave. Embora haja variação entre os diversos relatos, estima-se que isso ocorra em cerca de 30 % dos pacientes hospitalizados. Uma proporção menor desses acabará evoluindo com necessidade de substituição da função renal com diálise. Isso ocorre principalmente em pacientes intubados e em unidades de terapia intensiva, com relatos variando de 20 a 40 % de diálise em pacientes críticos. A mortalidade desses pacientes é elevada, e em nossa experiência chega a dois terços dos casos. Isso não difere muito da experiência internacional. O registro de internações em UTIs no Reino Unido (ICNARC) mostrou que, de 35.708 pacientes analisados, 18.7 % necessitaram de suporte renal. A letalidade hospitalar foi de 5,4%, nas UTIs foi de 37,2% e a letalidade dos pacientes em diálise foi de 62,5%.

Os sobreviventes desse quadro agudo têm uma fase de recuperação prolongada e laboriosa, sendo que metade deles ainda precisará de diálise por mais tempo. A taxa de recuperação da função renal após injúria renal aguda por Covid é significativamente menor do que em outras situações de pacientes críticos.

As repercussões a mais longo prazo ainda estão sendo estudadas, mas aparentemente permanecem sequelas renais, como proteinúria, hipertensão, disfunção tubular, doença renal crônica. Dados americanos anteriores à pandemia mostravam que 30 % das pessoas acometidas por insuficiência renal aguda desenvolviam doença renal crônica. Estima-se que esse número será maior após a Covid.

E qual o impacto da Covid em pessoas que já têm doença renal crônica, seja aqueles em tratamento clínico, ou em diálise ou transplantados? Aparentemente, o risco de adquirir a doença depende dos mesmos fatores epidemiológicos conhecidos na população geral. É discutível se pessoas com doença renal crônica teriam suscetibilidade maior ao vírus. Isso ainda precisa ser confirmado por outros estudos. O fato é que pacientes que se deslocam para centros de hemodiálise três vezes por semana para realizar seu tratamento estão mais expostos à doença. Todas as medidas de prevenção são recomendadas: máscara eficiente, limpeza das mãos, distanciamento.

Quando pessoas com doença renal crônica adquirem a Covid-19, seu curso clínico é mais grave e seu prognóstico é pior. Dos vários fatores, e várias comorbidades associadas a Covid severa, ter doença renal crônica em estágios moderados ou avançados, fazer diálise ou ser transplantado são das situações mais comuns e que mais influenciam a história natural da doença. O inquérito brasileiro de diálise de 2020, realizado pela Sociedade Brasileira de Nefrologia mostrou uma letalidade por Covid de 25,7 % em pacientes dialisados, comparado à população geral que é de menos de 3 %.

As complicações da Covid e alto risco de morte pela doença foi apenas um dos fatores que reduziram o número de transplantes durante esse período de pandemia, em todo o mundo. No Brasil, o número de transplantes de rim com doador falecido, que vinha aumentando ano a ano, voltou em 2020 a patamares de 2016. E o número de transplantes com doador vivo foi reduzido em 70 % aproximadamente.

Em relação à vacinação de pacientes com doença renal crônica, os estudos ainda são menos conclusivos do que os realizados com a população geral. Isso gerou uma crítica da Associação Europeia de Diálise e Transplante e da Sociedade Internacional de Nefrologia, com um chamado para que pacientes renais fossem tratados como outras pessoas, e que estudos fossem realizados nessa população. Também há uma ação mundial para que pacientes renais sejam priorizados nas campanhas de vacinação. Aparentemente, não há risco aumentado de para-efeitos da vacinação em pacientes renais, seja dialisados ou transplantados. Quanto à eficácia, estudos com a vacina de m-RNA da Pfizer mostraram resultados semelhantes à população geral em pacientes sob diálise, mas uma resposta menor em pacientes transplantados, por conta dos imunossupressores que estes usam. Outros tipos de vacinas elicitam respostas por anticorpos menos importantes do que na população em geral, mas não se tem analisado a imunidade celular nesses estudos. A idade, o nível de albumina e ter Covid previamente influenciaram a formação de anticorpos.

 Pela interferência dos imunossupressores na eficácia das vacinas, talvez seja prudente uma campanha de vacinação efetiva antes dos procedimentos de transplante. Não estou a par de estudos de efetividade com a Coronavac em pacientes renais.

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